Em setembro estreia Cinderella, uma versão musical do conto de fadas estrelado por Camila Cabello. Ainda não tive a oportunidade de ver o filme mas me peguei fazendo algumas reflexões e queria compartilhá-las aqui. Registro desde já que não tenho intenção nenhuma de esgotar qualquer assunto, me limitando apenas a trazer algumas coisas que tem me deixado inquieta.
Cinderela é um conto de fadas que ficou popularmente conhecido após a versão de cinema realizada pela Disney. Antes disso, o conto criado pelos irmãos Grimm passou por uma série de adaptações em que sacrifícios, como a mutilação de partes do corpo, dão lugar a elementos como o sapatinho de cristal e a fada madrinha, uma figura materna que compreende as dores da bela jovem – repleta de bondade, em contraste com as irmãs postiças, feias pois ruins – e se empenha em ajudá-la.
O Complexo DE Cinderela, trazido pela primeira vez pela escritora Colette Dowling, descreve uma característica quase inconsciente por parte das mulheres de serem cuidadas e protegidas por um companheiro idealizado, em um claro paralelo às alegorias dos contos de fadas. A autora identificou que muitas mulheres, que se encaixam nesse perfil, diante do medo da própria independência social e financeira – e até da ideia dela – anulam as próprias vontades e ambições em prol de responsabilidades domésticas ou matrimoniais.
Cinderella (1950)
O que quero falar aqui não é necessariamente sobre o Completo DE Cinderela, mas chega muito perto disso.
Já pararam para pensar em quantas adaptações de Cinderela foram feitas para o cinema? São milhares mas vou contar alguns dos mais famosos. A Cinderela da Disney, de 1950, teve duas sequências (2001 e 2007). Em 1997 a Disney lançou uma versão diferente com atores negros e Brandy Norwood no papel principal, mas mantendo fielmente o plot principal da gata borralheira. Em 1998 Drew Barymore foi protagonista de Para Sempre Cinderela, filme que amo com todo o coração. Hillary Duff estrelou outra versão em 2004 e Selena Gomez, outro em 2008. Dois musicais foram lançados, um em 2014 (Into the Woods, com uma conotação mais sombria) e outro em 2019 (Uma historia de Cinderela). O live action veio em 2015 trazendo Lily James loira e Richard Madden, no auge de Game of Thrones, como o príncipe. Há até uma recente versão brasileira com Maísa. Em setembro, vai estrear pela Amazon Prime MAIS UM. Com Camila Cabello no papel principal, o musical conta com Billy Porter no papel da fada madrinha e promete mais uma arrojada perspectiva da história, principalmente ao sugerir um terninho como roupa para o baile.
O filme ainda não estreou e esse post não é qualquer crítica direcionada à sua história – que sequer assisti – mas meu ponto aqui é indagar até que ponto a abordagem da Cinderela cheia de sonhos, que vê num baile uma oportunidade de ascensão social e no casamento a melhora de sua vida, vai continuar sendo algo interessante de ver e almejar. Além de ser crítica a insistência de Hollywood em produzir mais e mais filmes com a temática de Cinderela, ainda se prende em versões rasas de empoderamento e do superficial glamour em volta de uma “vida de princesa”, regada a luxos que não foram conquistados mas sim, recebidos por meio de uma “dádiva”.
O mesmo tipo de história foi mote de milhares de comédias românticas com protagonismo feminino e parece que Hollywood está presa em um loop, como se não tivesse condições de contar a história de uma personagem mulher de outra forma. Estariam as produções de grandes bilheterias ou streamings fadadas a um Complexo DA Cinderella?
O conto de fadas tem papel fundamental para permear o imaginário das pessoas mas é preciso ter uma visão crítica quando é usado para pautar comportamentos e, sobretudo, condutas morais. É aí que vem o Complexo DE Cinderella valorizando na figura feminina, ainda que moderna, características conservadoras de predisposição para tarefas domésticas, gentileza, bondade, tom de voz calmo e sereno, beleza, longos cabelos e sonhos que podem, muitas das vezes, se materializar ao encontrar um “homem perfeito” ou um “casamento perfeito”. Mundo moderno, sonhos antigos, coisa que nem Jane Austen consegue se desprender do contexto de sua época – o que não é um problema nesse caso.
Veja 500 Dias com Ela, por exemplo. Summer queria o que era melhor para ela e não orientou as escolhas de sua própria vida a partir das expectativas de seu companheiro. Muitas pessoas não entendem isso e interpretam Summer como uma verdadeira vilã por não ter retribuído com amor e um relacionamento duradouro aquele gentil rapaz que se apaixonou perdidamente por ela. Brilho Eterno de uma mente sem lembranças se distancia um pouco do meu ponto aqui por não ser protagonizado por uma mulher, mas vale a menção.
Outro que me veio em mente foi Enola Holmes. O filme se perde um pouco numa narrativa confusa mas embora a protagonista tenha desviado de seu caminho para seguir algo que parece ser um grande amor, em determinado momento ela decide deixar o romance de lado e focar na missão que envolve sua mãe. Não é o melhor exemplo mas me pareceu importante citar esse filme aqui.
Bem, romances começam e acabam, algo normal que deveria ser tratado com mais naturalidade. E quanto romances acabam, é igualmente natural que as pessoas sigam sozinhas ou encontrem alguém ou ainda, que as mesmas pessoas se reencontrem no futuro e fiquem juntas: tudo isso pode ser romantizado em um filme. O fim de um relacionamento não é o fim do mundo e tratar dessa forma – tal qual os problemáticos Crepúsculo e 50 Tons de Cinza – mostra uma outra faceta da narrativa da Cinderela: ou a pessoa é feliz e completa com aquele príncipe encantado, ou ela não é nada.
Eu, como grande fã de comédias românticas, assisto hoje, adulta, aceitando previamente um certo distanciamento da minha realidade. Claro que me divirto, mas ver a mesma história sendo contada tantas vezes nas telonas é cansativo e pode espelhar negativamente comportamentos de pessoas mais jovens que começarem a construir seus sonhos e objetivos a partir de narrativas tão empobrecidas.
Por fim, queria deixar aqui algumas indicações interessantes de comédias “românticas”, ou filmes que não sejam de super herói, desenhos, Ghibli, baseados em fatos reais ou documentários, que contam histórias de mulheres que sem serem rotuladas como vilãs, acabam escolhendo elas próprias em vez de rumar a um casamento e somente assim viver feliz para sempre: La La Land e O Diabo Veste Prada.
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