A Casa do Dragão (HBO) estreou arrancando suspiros dos fãs de Guerra dos Tronos que, descontentes com o fim de Daenerys e sua jornada, ansiavam por mais conteúdo sobre os Targaryen e seus dragões.
É aí que Casa do Dragão entra arrebatando nossos corações com personagens carismáticos e uma trama mais objetiva. Porém, a série volta a tocar em um dos problemas de sua antecessora e, a meu ver, está ainda pior.
E por que isso é um problema narrativo? Porque o livro Fogo e Sangue é um manuscrito de um meistre relatando os acontecimentos envolvendo os Targaryen em Westeros. Não são narrativas em primeira pessoa, tal qual as Crônicas de Gelo e Fogo.
Logo, muitas coisas na série consistem em criações dos roteiristas e trabalho de direção. É nessa liberdade que mora o problema.
Não é algo que acontece com TODAS as personagens femininas, mas acontece repetidamente com duas principais: Rhaenyra e Alicent. Vou trazer exemplos e alerto que isso pode trazer gatilhos de abuso psicológico e sexual.
Alicent e o sofrimento da mulher casta e submissa
Alicent, no início sem muitas ambições, é coagida pelo seu pai Otto Hightower a seduzir o rei Viserys e conquistar sua confiança, até que ela se torne sua esposa. Alicent se torna rainha apenas para cumprir um protocolo, mas não sente prazer na vida que tem.
Para manter-se informada sobre o que acontece debaixo de seu teto na Fortaleza Vermelha, Alicent troca informações com Larys. Ela exibe seus pés desnudos e permite que ele se masturbe na sua presença.
É uma cena grotesca e de uma infelicidade que, além de faltar qualquer referência no livro, não agrega em nada a história dos personagens e o papel que eles irão desempenhar. Ver o desconforto de Alicent só piora.
Rhea, chamada pelo marido de “vaca de bronze“
Com pouquíssimo tempo de tela, sabemos na série que Daemon é casado com Rhea. Porém, não cumpre seus deveres conjugais (que no caso é ter herdeiros) e sequer mora com a sua mulher.
No livro há apenas a menção da morte dela, mas a série fez questão de construir a narrativa que Daemon voou até o Vale de Arryn para matá-la a pedradas, enquanto ela implorava para que ele não fizesse isso. Daemon saiu impune.
Estupros e abusos de Aegon II
De acordo com a série, corre por toda a fortaleza vermelha que Aegon sempre está se engraçando com criadas, inclusive agindo contra a vontade destas.
Há uma cena em que uma criada, aos prantos, conta para a Rainha Alicent o ocorrido e recebe uma quantia em dinheiro pelo “transtorno”. Quando a Rainha vai confrontar o filho, ele está indiferente.
Não parecia ser necessário para a trama, já que desde adolescente deixam bem claro a lascividade de Aegon. O público poderia ter conhecimento do estupro se apenas a rainha mencionasse, mas em vez disso a série opta por colocar a vítima aos prantos, se expondo – e expondo a própria vida – ao revelar que foi agredida pelo futuro rei.
Rhaenyra: violências dos homens que mais confia
É importante lembrar que a Rhaenyra dos livros é eloquente e ambiciosa, mas tem uma motivação justa. A série traz uma Nyra mais doce e reforça nela a figura de mártir.
O primeiro abuso que sofre é Criston Cole. Na série é seu primeiro amante que se revolta depois dela recusar um convite para fugir e começa a atacá-la de várias formas. Conspira contra sua então inimiga Alicent, causa grande tumulto no seu casamento e é hostil com os seus filhos.
Daí o final da primeira temporada coloca Nyra sob outra circunstância de abuso. Dessa vez o seu amado companheiro, Daemon, que tanto lutou para ser digno de sua confiança e estar a seu lado, a agride.
Inclusive Daemon, de admirador da sua sobrinha e amante, tem ainda nos livros uma inquietude de guerreiro. Na série, porém, é um dos personagens mais abusadores, cometendo violências com a amante, a primeira esposa, a terceira esposa e sendo absolutamente indiferente à morte de Laena Velaryon.
É uma cena que surpreendeu os fãs e pareceu gratuita, já que uma relação de confiança e respeito entre os dois estava sendo construída nos últimos episódios.
Precisamos falar sobre isso (de novo)
Apesar de eu amar o universo de Guerra dos Tronos e os livros que deram origem à série, não me escapa que as situações de abuso mostradas na HBO eram também gratuitas e desnecessárias. Os livros têm sim cenas bem pesadas, mas não acho que seja preciso adaptar literalmente tudo.
Aliás, muitas dessas cenas pesadas foram adaptadas – como as cenas com Daenerys e Sansa – ao passo que outros pontos bem interessantes da história como um todo foram deixados de lado para resumir os acontecimentos.
Já falei em outra oportunidade sobre o problema que é a construção de uma personagem feminina ser feita com base na motivação que ela tira por ter sido vítima de abuso psicológico e sexual. É como se nós, mulheres, só pudéssemos amadurecer a partir das violências que passamos.
É uma pena que numa série sobre uma família real e os dragões, tenha cuidado de inserir em cada personagem feminina do arco principal uma situação de abuso, normalizando essas situações. Ainda, é algo pouco problematizado na série, o que só piora.
Decisões de roteiro como estas acaba caminhando pra uma pobreza criativa. Além de ser algo já explorado cansativamente em milhares de histórias, sobretudo em Guerra dos Tronos, é agressivo e insensível. Resta torcer para que a segunda temporada foque naquilo que realmente queremos ver: treta entre personagens e dragões.
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