Não sei quantas vezes li The Sandman, mas posso garantir que foram pelo menos cinco. Conheci o quadrinho quinze anos atrás graças a uma professora de inglês do ensino médio que me emprestou o primeiro encadernado e a edição 8 ou 9 avulsa. Cheguei em casa sem saber o que esperar daquilo e li. E reli. E reli de novo. No dia seguinte, já viciado, procurei a professora esperando pela próxima dose, e a resposta foi um desapontador “já li e é tudo incrível, mas não tenho o resto, talvez você encontre na internet”. Na época eu sequer tinha um computador e a internet da escola tinha a velocidade de uma lesma manca subindo um morro, mas consegui baixar todas as edições no laboratório de informática. Só havia um pequeno inconveniente: encontrei as edições em inglês, mas não em português. Como não tinha jeito, peguei um dicionário e fui encarando. Esta é parte da história de como aprendi inglês.
(obrigado, Carla, você era uma das pessoas mais legais do mundo, e tenho certeza que continua sendo)
Desde então li a primeira versão em português, lançada pela Editora Globo e a Versão Definitiva, lançada pela Panini. Reli a obra toda em inglês pelo menos duas vezes, já com um bom domínio do idioma, além de sempre pegar uma edição aqui e ali para reler, quando batia saudade. E convenci tanta gente a ler que deveria receber comissão da Panini.
As edições Absolute de Sandman são luxo puro
Após décadas de tentativas infrutíferas de vários estúdios, uma adaptação para a Netflix chega ano que vem com forte envolvimento do autor Neil Gaiman – ele é o produtor executivo. Estamos, na minha opinião, na melhor época para ler Sandman. Não porque acredito que a série será ruim, pelo contrário; tenho esperanças que a série será incrível, e esse é o problema.
(ah, não é porque eu tenho medo que Sandman ficará mais popular: adoro divulgar o que gosto, e não é como se Sandman fosse uma obra desconhecida)
A grande questão é que séries e filmes muitas vezes mudam demais a relação das pessoas e dos fãs com a obra. Entre meus filmes preferidos está a trilogia O Senhor dos Anéis, mas, se pudesse escolher, eu provavelmente escolheria nunca os ter visto. É que os filmes são bons demais, grandiosos demais, e foram aos poucos entrando na minha cabeça e arrancando à força a história que eu tinha imaginado ao ler o livro. Aragorn agora sempre será o Viggo Mortensen, Galadriel sempre será a Cate Blanchett e por aí vai.
Coleção da famosa Edição Definitiva
Sandman é um quadrinho e, portanto, já tem um visual definido, mas cada saga é ilustrada por pelo menos um artista distinto, e quadrinhos são muito mais estilizados que filmes. A imaginação trabalha mais ao lê-los que ao assistir algo. Daqui a pouco as artes de fãs ficarão cada vez mais parecidas com as personagens da série, as citações virão de lá, e tudo relacionado a Sandman ficará na sombra do audiovisual. É nossa última chance de ter um Sandman mais nosso, e de conhecer um Sandman mais dos outros.
Sandman é sobre Sonho (também conhecido por Sandman, também conhecido por Morpheus, também conhecido por infinitos outros nomes), um dos Perpétuos. Os Perpétuos (sete, no total) são uma família de entidades que representam conceitos comuns a todos os seres vivos: Destino, Morte, Sonho, Desejo, Desespero, Delírio e um sétimo perpétuo que abandonou seus cargos e que nomeá-lo seria um pequeno spoiler. Os Perpétuos não são deuses, são muito mais antigos e poderosos que eles. Deuses morrem quando as pessoas esquecem deles, já os Perpétuos continuarão a existir enquanto uma criatura puder nascer, sonhar, desejar, delirar, se desesperar, cumprir um destino e, por fim, morrer.
Os Perpétuos são uma família típica de irmãos com todas as brigas, fofocas, camaradagem e muita coisa jogada para debaixo do tapete que sempre há entre irmãos. O grosso do quadrinho não é sobre eles mas sobre pessoas vivendo em um mundo por vezes assustador e sobre criar e compartilhar histórias, e sobre como há algo maior que nos liga como seres vivos.
Todo o sucesso que Sandman acumulou veio de um lugar inesperado: a mente do jovem britânico Neil Gaiman. Ele não era novato nos quadrinhos, tendo escrito algumas histórias no Reino Unido que lhe renderam certa fama, entre elas a influente série Miracleman. Além disso, ele já tinha escrito três graphic novels que foram lindamente ilustradas pelo seu amigo e (desde então) parceiro de longa data Dave McKean: Sinal e Ruído, Mr. Punch e Violent Cases. As graphic novels impressionaram a DC, que os contratou para trabalharem na editora, onde fizeram uma minissérie chamada Orquídea Negra. A miniss´érie impressionou a editora Karen Berger a ponto de ela oferecer a Gaiman uma série mensal. Ele escolheu o esquecido personagem Sandman, que não era mais publicado há mais de dez anos, mas dele Gaiman só manteve o nome. A luxuosa arte de Dave McKean não era adequada ao ritmo de produção de uma série mensal, então ele ficou responsável só pelas capas.
Todas as três são incríveis (Sinal e Ruído não está na foto, mas também foi lançada no Brasil)
Sandman foi um sucesso gigantesco de crítica, e é até hoje citada como uma das melhores histórias em quadrinhos de todos os tempos. Em relação ao público, Sandman fez tanto sucesso que chegou a vender mais que Superman e Batman, e é republicada até hoje para os mais diversos bolsos (pelo menos lá fora, já que aqui quadrinhos são algo cada vez mais um item de luxo).
A história se passa no universo da DC, o mesmo da Liga da Justiça, Jovens Titãs, etc., e usa de muitos elementos da vasta mitologia da DC nas histórias, mas eles são só um leve tempero, não o prato principal. Tudo que é necessário para entender as histórias é explicado dento das revistas. A verdade é que o estilo mais literário de Sandman não se encaixa muito bem nas histórias de super-heróis, o que até incentivou a criação de um selo próprio.
Sandman é uma história em quadrinhos recomendada para leitores maduros, assim como várias outras da época, que lidavam com temas muito pesados e foram ganhando muitos leitores. Karen Berger criou, então, o selo Vertigo, que no início abrangia seis publicações: Shade, o Homem Mutável; Hellblazer; Homem-Animal; Monstro do Pântano; Patrulha do Destino e Sandman. Além de ter um conteúdo mais adulto, o selo servia também como indicador de qualidade: estas séries (e outras que saíram pelo selo como V de Vingança, 100 Balas, Fábulas e muitas outras) estão entre as mais aclamadas dos quadrinhos da época. Karen Berger saiu da DC em 2003 e em 2020 a DC matou o selo, substituindo-o por um outro chamado DC Black Label. A bem da verdade a Vertigo já não era mais o que havia sido no passado, não conseguindo se equiparar mais com a qualidade e impacto que os quadrinhos que a editora Image oferece ao mesmo público.
Por onde começar a ler Sandman? Ao contrário de muitos outros quadrinhos americanos, a resposta é simples: pelo número 01. A série original teve 75 edições mensais e um especial (A Canção de Orfeus). No Brasil atualmente temos duas opções: as Edições Definitivas (também conhecidas como Absolute Sandman), bem caras e luxuosas, que frequentemente esgotam e são reimpressas, e a Edição Especial de 30 Anos, não tão caras nem tão luxuosas mas que também é uma ótima opção. Há outras edições, claro, mas esgotadas. A coleção completa da Editora Globo vai ser difícil de encontrar completa, e a da Conrad é está esgotada há mais de 10 anos e custa uma pequena fortuna. Vale a pena ler Sandman do jeito que der.
A coleção da Conrad saiu antes da versão Absolute inglesa e fez muita gente babar de vontade na época (eu incluso)
As 75 edições mais o especial O Sonho de Orfeus estão incluídas nas 4 primeiras Edições Definitivas ou nas 10 edições da Conrad e da Edição Especial de 30 Anos. E, bem, a história termina aí. Mas e se após ler você ficar com um grande buraco no coração, do tipo que só os Perpétuos podem preencher? O que mais vale a pena conhecer?
Neil Gaiman conseguiu terminar a história do jeito que queria, mas é claro que a DC não deixaria uma propriedade tão rentável parada. Com o tempo foram surgindo histórias derivadas, minisséries, etc. O próprio Gaiman escreveu algumas, e vou citá-las abaixo. Não falarei das outras: a qualidade varia, há muita coisa e, embora parte do material seja muito bom, outra parte é bem esquecível. Talvez em outro texto eu fale deles.
As duas minisséries da Morte, Morte: O Alto Preço da Vida e Morte: O Grande Momento da Vida, são deliciosas. Foram compiladas diversas vezes, como na edição da Conrad e em Morte: Edição Definitiva. Ambas as coletâneas vêm com uma pequena história em quadrinhos educativa feita para prevenir contágios por HIV: Morte Fala Sobre a Vida, com arte do Dave McKean, onde a Morte e John Constantine ensinam a usar camisinha. Ah, usem camisinha! A Edição Definitiva tem outro extra: “Um Conto de Inverno”, história originalmente publicada em Vertigo Winter’s Edge 2.
Todo mundo se apaixona pela Morte
Sandman: Edição Definitiva 5 reúne diversas histórias extras. Como elas também foram lançadas separadas no Brasil, vou comentá-las separadamente:
Sandman: Noites Sem Fim tem sete ilustradores diferentes, cada um lidando com uma história de um Perpétuo. É um time de estrelas: Morte tem arte do P. Craig Russell (Elric de Melniboné, O Anel de Nibelungo). Desejo tem arte do Milo Manara (Click, Caravaggio). Sonho tem arte do Miguelanxo Prado (Tangências, Traço de Giz). Desespero tem arte do Barron Story (Life After Black, War and Peace), com planejamento feito pelo Dave McKean. Delírio tem arte do Bill Sienkiewicz (Cavaleiro da Lua, Elektra Assassina). O Perpétuo que não falarei o nome tem arte do Glenn Fabry (Authority Thor). Destino tem arte do Frank Quitely (Batman e Robin, All-Star Superman).
Arte feia de Noites Sem Fim, né?
Caçadores de Sonhos originalmente não é uma história em quadrinhos, mas sim um livro ilustrado. Tem arte do Yoshitaka Amano, responsável pela logo e design de personagens de Final Fantasy e pelo filme de animação Vampire Hunter D. A arte é de de cair o queixo, e a história tem uma pegada mais oriental. Caçadores de Sonhos foi também adaptado para quadrinhos pelo P. Craig Russell.
Arte feia do Yoshitaka Amano, né?
Teatro da Meia-Noite de Sandman trás o encontro do Morfeus de Neil Gaiman e Wesley Dodds, o Sandman original, do Gardner Fox e Bert Christman. A arte é do Teddy Kirstiansen, responsável pela arte de vários quadrinhos da Vertigo, e o roteiro é assinado por Matt Wagner além do Neil Gaiman. Ela também aparece na compilação Dias da Meia-Noite.
Este livro é uma coleção dos “Lado B” do Gaiman
Além disso Neil Gaiman lançou Sandman: Prelúdio (Overture, em inglês), com a arte do maravilhoso J. H. Williams III, que conta uma história que acontece antes de Sandman 1 mas é melhor que seja lida depois para não estragar certas surpresas. Tipo Star Wars, onde se você assistir os filmes I-III você chegará ao filme V sabendo que Dark Vader é pai do Luke Skywalker. Ela não está em Sandman: Edição Definitiva 5, mas foi lançada separadamente.
Arte feia a do J. H. Williams III, né?
Além disso, para quem fala outra língua, eu recomendo o audiolivro de Sandman. A primeira temporada abrange as edições 1-20 e está de graça no Audible até dia 22 de outubro em diversos idiomas, mas infelizmente não em português. A narração da versão inglesa é do próprio Gaiman e entre os intérpretes temos James McAvoy (Morpheus), Kat Dannings (Morte), Andy Serkis (Matthew), Kisten Schaal (Delírio) e David Tennant (Loki). A segunda temporada acabou de estrear. Há algo curioso em ouvir o audiolivro: quadrinhos tem um componente textual e um visual, mas não um de áudio. Ainda assim a história funciona muito bem narrada, e por vezes é até mais imersiva. A narrativa em primeira pessoa é curiosa, mas combina bem com o tom impositivo de algumas personagens.
Se Sandman fosse uma religião, com certeza teria muitos fiéis. Espero ter ajuda a espalhar a palavra, e que sua jornada pelo Sonhar seja tão prazerosa quanto a minha.
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