Suspense, vazio, mistério e pessoas buscando entender quem elas são no mundo. Ruptura (Severance) estreou no AppleTv em fevereiro deste ano mas confesso só ter ouvido falar da série quando assinei o serviço de streaming.
De acordo com a sinopse, Mark S. lidera uma pequena equipe no escritório da Lumon e todos tiveram as memórias divididas, por uma tecnologia da própria empresa, entre a vida no trabalho e a vida pessoal, fora da empresa. São eles: Irving, Dylan e Hellen e juntos são a equipe de macro-processamento de dados. Os internos (enquanto estão no escritório) são geralmente passivos e aceitam a rotina de trabalho sem questionar como é a vida dos externos (eles quando saem do escritório). O elevador da empresa é o ponto de passagem entre essas “duas vidas” e o efeito da transição é, ao mesmo tempo, simples e emblemático.
É uma trama extremamente intrigante e não consigo pensar em nada audiovisual que tenha explorado algo parecido. A ideia partiu de Dan Erickson quando, segundo entrevista, ele começou a imaginar como seria a sua vida se pudesse separar totalmente o trabalho da vida pessoal.
Depois de instigantes nove episódios com aproximadamente uma hora cada, me senti no dever de listar para você OS MOTIVOS pelos quais acho que você deveria assistir essa série. Só assim eu consigo dar justificativas sem entregar qualquer spoiler da história e sem correr o risco de estragar a experiência de quem se dispor a assistir.
O terror psicológico de ALIEN
Alien – O 8º passageiro, de Ridley Scott, segundo entrevista do designer de produção Jeremy Hindle, foi uma inspiração direta para a ambientação da série. Assim como no filme, o protagonista passa por corredores claustrofóbicos e labirínticos, passagens vazias, portas que podem não dar em nada ou podem levar a locais inexplicáveis, elementos do ambiente se unem para criar o terror psicológico no escritório da Lumon, onde os personagens passam trabalhando oito horas por dia.
Cena de Alien – O 8ª passageiro.
É interessante pois depois de um longo tempo de isolamento e home office, voltar ao ambiente presencial de escritório tem sido, no mínimo, estranho. É um incômodo que a série passa nos cenários: tudo muito frio, extremamente iluminado, sem um toque “humano”.
CONTROL e a tensão do vazio
Se você gosta de videogames, provavelmente já ouviu falar em Control, jogo da 505 Games e Remedy Entertainment lançado em 2019, o qual recebeu prêmio por melhor direção de arte. O jogo já ficou de graça em praticamente todas as plataformas em que ele é compatível e isso está longe de ser um demérito: é um jogo soturno, misterioso e com um suspense que nos deixa tensos o tempo todo.
A história do jogo gira em torno de Jesse Faden entrando em uma agência secreta em Nova York para entender os mistérios que rondam o prédio do Bureau que está praticamente abandonado. Há uma camada sobrenatural no jogo mas ela não tem referência nenhuma com Ruptura.
As partes do jogo em que conduzi Jesse pelos misteriosos corredores desérticos do prédio e o fato de existir um mundo inteiro vivendo alheio aos problemas do Bureau foram coisas que a série me remeteu. Porém há um detalhe que trouxe uma lembrança forte do jogo: a estética vintage de alguns cenários e dos objetos de poder.
Um dos objetos de poder em CONTROL.
Matrix e a alternância entre mundos
Tenho afinidade por histórias que mostram personagens divididos entre diferentes aspectos da vida ou do consciente. Matrix – vou considerar só o primeiro filme aqui – mostra a vida de pessoas entre um mundo “real”, dentro da nave Nabucodonosor, e um mundo fictício que elas escolheram viver, seja pelos motivos que for. Até o efetivo “despertar”, Neo é cético e tem dificuldades para entender o que é real e o que não é.
https://youtu.be/NpyaKWY9HOc
Esse dilema é o cerne dos personagens em Ruptura. Assim como em Matrix, na série há uma questão sutilmente trabalhada sobre um possível despertar e na comunicação com realidades que não se conectam e é impressionante como a direção de Ben Stiller (na maior parte dos episódios) adiciona tensão e dramaticidade das cenas para passar justamente a sensação de vazio de quem vive uma vida pela “metade”.
Assim como Matrix, Ruptura cria seu próprio universo e o explora, deixando pontos obscuros para uma possível sequência.
Twin Peaks
Quando Twin Peaks estreou em 1990, a série de David Lynch veio com uma trama complexa jamais vista antes, com elementos de drama, mistério, terror psicológico e suspense. O detetive Dale Cooper vai para a cidade Twin Peaks investigar o assassinato de Laura Palmer e nessa jornada encontra personagens excêntricos, dando um ar de surrealismo à história.
Enquanto em Twin Peaks conhecemos aquele universo único e estranho sob os olhos de Cooper, em Ruptura vemos o descobrimento nos quatro personagens que integram a equipe de macro processamento de dados. Hellen, a funcionária que acaba de chegar no escritório, é por onde começamos a criar uma conexão inicial em relação aos outros três que já estão integrados à rotina de trabalho pra lá de estranha. Porém cada personagem é elementar para compor um ponto da trama que vai sendo revelado. A sensação é que, ao mesmo tempo que todos parecem saber de tudo, sentimos que ninguém sabe de nada.
Lost e a dualidade entre o bem e o mal
Provavelmente você acompanhou o fenômeno da série Lost, provavelmente você só tenha ouvido falar. Acontece que Lost foi um fenômeno nunca antes visto em termos de série televisiva: pessoas do mundo inteiro conversavam continuamente sobre os episódios, os mistérios, as teorias, os personagens e tudo mais que cercava aquele universo.
Cada um tecia as próprias hipóteses com base em pontos óbvios da história ou sutilezas que eram notadas por pessoas mais atentas. Cada episódio vinha acompanhado de uma explicação sobre algo anterior ao mesmo tempo que trazia novas questões para ocupar a cabeça dos fãs. Lembro de passar horas com meu chefe de estágio na segunda-feira debatendo o que tinha acontecido no episódio exibido no domingo. Essa cena do Locke se descobrindo uma nova pessoa com um novo propósito me veio na cabeça quando vi Ruptura:
Ruptura é cheia de coisas inexplicáveis que só aumentam ao longo dos episódios, mas ao mesmo tempo a história nos dá explicações razoavelmente boas a ponto de nos prender e ficarmos interessados em saber a consequência das ações ou das explicações.
As provocações existencialistas
Esse argumento vai convencer quem gosta de ir mais à fundo na história e nas teorias. O existencialismo defende que, antes de saber quem somos, nós existimos e é na existência que tentaremos entender sobre nós mesmos, nossa consciência, nossas escolhas.
A série então provoca algumas questões interessantes. Quem somos? Se formos fragmentados, cada parte nossa será o “eu” individualizado ou apenas uma fatia dele? Cada parte desse “eu” poderá tomar decisões pelo “todo”? Quem dessas partes tem mais poder, que dita as regras?
Ao mesmo tempo que essas perguntas são discretamente colocadas, a série vai dando algumas respostas pela perspectiva dos personagens. Todos estão acomodados com as suas escolhas e suas rotinas até que um elementos soltos aqui e ali vai gerando dúvida nos quatro funcionários do macro-processamento de dados.
Falando da série em si, o elenco é incrível e elaborar isso melhor pode acabar entregando alguma coisa legal da série. Tem Adam Scott (Mark S), Patricia Arquette (Harmony Cobel), John Turturro (Irving), Zach Cherry (Dylan), Christopher Walker (Burt Goodman) e a agradável surpresa com Tramell Tillman (Milchick).
Os cenários falam por si: em paralelo ao “mundo real” em que vivemos, com ruas sujas, barulho, carros e poluição, dentro da Lumon tudo é milimetricamente construído, cada ambiente parece ter sido cautelosamente desinfetado a ponto de não deixar nenhum resquício de uso humano. A sala da equipe (da foto) possui apenas quatro estações de trabalho mas a sala é imensa, fazendo com que a equipe pareça insignificante. Tem uma matéria bem legal aqui explorando melhor o design dos escritórios da Lumon, mas tem spoilers então fique avisado.
Muitos têm falado sobre essa série ser uma grande promessa do ano e agora, depois de completar a primeira temporada, afirmo: estavam certos.
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