Midsommar (2019), de Ari Aster, considerado um longa de Pós Terror pelos críticos
Uma frágil mulher engravida misteriosamente de um demônio e a partir daí começa a ser “cuidada” por seus vizinhos idosos sinistros; uma dançarina sonhadora é aprovada em uma tradicional escola suíça de Ballet sem saber que por trás de toda aquela atmosfera de arte e dança há uma seita de bruxas malignas e perigosas; um inóspito hotel de beira de estrada abriga um psicopata que se veste de mulher para matar suas vítimas.
Norman Bates, vivido pelo ator Anthony Perkins em Psicose de 1960
Se você conhece ao menos um destes resumos parabéns! Você já viu um filme de pós-terror.
Mas o que de fato significa Pós Terror?
O termo foi criado por Steve Rose em 2017, enquanto fazia sua resenha para o jornal The Guardian do longa Ao Cair da Noite lançado no mesmo ano. Para ele, pós terror é um subgênero que foge dos clichês convencionais – como os famosos jumping scares (aqueles sustos repentinos que precedem algumas cenas) e os finais e tramas das produções.
Ao Cair da Noite, 2017, de Trey Edward Shults
Sair do “lugar comum” para desenvolver uma história dentro do terror não é nada inédito. Basta avaliar as sinopses que descrevi acima para perceber: O Bebê de Rosemary foi lançado em 1968; o primeiro longa de Suspiria é de 1977 e Psicose de 1960. Os três exemplos utilizam alegorias bem distintas para descrever uma história de terror, elucidando temas de certo modo aleatórios, com mistérios que foram tão bem conduzidos narrativamente, que se destacam sem nenhuma dificuldade entre os longas de terror da época e da atualidade.
Contudo, o que Steve Rose faz em sua análise é jogar de lado todo um compilado de tramas, subgêneros e categorias para elucidar algo que nem de fato pode ser separado entre os demais: ao criar o pós-terror ele inferioriza as outras produções, colocando todas em um patamar de falta de qualidade em todos os parâmetros, e pior: tenta criar uma qualificação extra que torna estes filmes revolucionários, o que de fato não compreende a verdade.
Só para deixar claro: as obras que citei são incríveis e de qualidade excepcionais, elevando o gênero de terror e renovando suas qualidades; são atemporais, bem desenvolvidas, com personagens elaborados, complexos e carismáticos: além disso, há um clima apresentado desde a primeira cena que consegue criar uma tensão apavorante no ar; sem precisar de qualquer jumping scare ou gore excessivo, apenas construindo uma narrativa apavorante e complexa.
Suspiria de 1977, de Dario Argento
MAS, tudo isso não é algo revolucionário, e explico o porquê: os tais clichês que Rose descreve em sua análise são os clichês que acompanham um movimento dentro do gênero de terror; são tendências que aparecem de tempos em tempos para satisfazer um público que também se sente cansado com a série de repetições e cópias genéricas das tramas que deram certo: e se pararmos para pensar vamos perceber que não é um caso tão exclusivo do próprio terror, ele acompanha movimentos sociais que evoluem ou fazem parte de ciclos.
Quem se lembra quando Ringu estreiou nos cinemas e trouxe consigo uma enxurrada de produções orientais sobre assombrações, maldições e possessões? O público foi bombardeado por uma série de longas com as mesmas temáticas e origens, que começaram com o original, passaram pela versão estadunidense O Chamado, e então O Grito, Possessão etc… produções boas e outras bem… nem tanto. A grande onda veio e passou mas, antes deste movimento obras como Hausu de 1977, Onibaba (1964) e Inferno de 1960 já eram obras nipônicas consagradas em contexto mundial.
Onibaba, 1964, de Kaneto Shindô
A Onda do Slasher
Um pouco antes, o cinema reviveu a glória dos filmes slashers com o lançamento de Pânico (1996), Eu Sei o Que vocês Fizeram no Verão Passado e tantos outros semelhantes: mas o movimento se iniciou na década de 70 com o Massacre da Serra Elétrica e logo Halloween beberia da mesma fonte abrindo as portas para Sexta-Feira 13, A Hora do Pesadelo e tantos outros… Com o tempo as produções perderam o holofote e só no fim da década de 90 voltaram ao apogeu com serial killers criativos, usando suas máscaras irreverentes e matando a todos com requintes de crueldade… a todos não, a QUASE todos… ou você não se lembra da mocinha frágil que sempre sobrevivia no final, com doses de Sorte (muita Sorte) e os felizes acasos dos roteiros? Este foi mais uma tendência dentro dos slashers que perdurou por um longo tempo, as Final Girls: mocinhas indefesas que Sabe-Se Lá Por quê conseguiam sobreviver e se livrarem do triste fim que todos os seus amigos, namorado, mãe, pai e irmão tiveram… Sally Hardesty (Marilyn Burns) a loirinha fofinha de o Massacre da Serra Elétrica, Nancy (Heather Langenkamp) namoradinha de Glen Lantz (Jhonny Depp em seu primeiro papel para o cinema) em A Hora do Pesadelo e Sidney (Neve Campbell) da série Pânico, são alguns exemplos de mocinhas indefesas que se safaram dos seus algozes.
Com o passar dos anos, e também com a mudança da nossa forma de encarar o mundo, até as Final Girls foram se extinguindo dos longas (sim, elas continuam existindo, mas são em número menor, perderam um pouco sua relevância), pois se tornou mais sensato e fez mais sentido entender que no fim das contas era impossível sobreviver ao seu estimado algoz. É mais fácil ver esse tipo de final “infeliz” nas prequels slashers para justificar a criação do serial killer e sua origem, mas ainda sim encontramos em outros longas de forma descarada e sem o menor pudor. Mais uma transformação.
Sidnei Campbell e seu algoz em Pânico (1996) de Wes Craven
Fazendo parte deste movimento cíclico entre os blockbusters de terror estão tantos outros subgêneros que vieram, foram embora, e voltaram ao seu auge. Ou melhor dizendo: ficaram famosos enquanto novidades, depois perderam os holofotes quando tantas produções semelhantes chegaram, e voltaram a chamar atenção em uma outra época – uma década distinta – quando já não eram mais lembrados.
O Gore é um outro exemplo próximo: vários longas lançados no início dos anos 2000 como O Albergue (2006), Mártires (2008) e Jogos Mortais (2009) chegaram com propostas semelhantes e o objetivo principal de fazer revirar nossas entranhas. Mas a ideia de torturar, estripar, desmembrar e deixar o sangue jorrar livre chegou muito antes, aproximadamente na década de 70 com o Despertar dos Mortos (primeira obra de George Romero sobre zumbis), Canibal Holacausto de 1980 ou Hellraiser de 1990. Épocas distintas, auge, declínio, novo apogeu… Percebeu a semelhança?
Mártires (2008) de Pascal Laugier
Mas onde entra o Pós Horror em tudo isso?
É possível citar os mesmos exemplos em outros subgêneros do terror que descrevam esses movimentos, todos os que coloquei neste post vão conter situações semelhantes que vão demonstrar isso. Então voltamos às primeiras sinopses que descrevi lá no início:
Hitchcook, que merece um conteúdo especial para si, construiu um legado dentro do cinema de terror. Suas obras foram eternizadas e são de fato atemporais em vários sentidos. Os longas construídos em sua carreira, como o supracitado Psicose, possuem uma atmosfera tensa, preparada cena por cena, para provocar terror no expectador. É “o medo que deixa apenas a porta entreaberta e nunca escancarada” como o próprio diretor já disse. Psicose, lançado em 1960, foi uma das produções que não utilizou qualquer alegoria física ou jumping scares exagerados para narrar a história de Norman Bates e sua falecida mãe: focou apenas no contexto misterioso em uma atmosfera que crescia gradativamente. Foi preciso muito pouco para causar o efeito desejado, e o sucesso deveu-se a isso.
Suspiria de Dario Argento focou na atmosfera peculiar de uma escola de ballet para criar o ritmo certo que nos levaria a tensão e ao pavor de forma sinuosa e também gradativa. Assim também é o longa de Roman Polanski onde acompanhamos uma Rosemary pálida e fragilizada, realizando o sonho de ser mãe enquanto é, aos poucos, levada a histeria e ao desespero por não entender o que de fato acontecia a ela… Todos são obras excelentes que conduzem o expectador no tempo certo aos próprios medos, graças ao reflexo e a narrativa muito bem construída e desenvolvida.
O Bebê de Rosemary (1968), de Roman Polanski
De volta ao futuro, alguns bons anos depois, temos obras renascendo deste fruto e bebendo da fonte sempre inspiradora de obras como estas: Jordan Peele com os excelentes, Corra! e Nós; Ari Aster com os espetaculares Hereditário e Midsommar e tantas obras inseridas no cenário de terror com a sensibilidade e a coragem de quem deseja criar uma boa história e além disso, deixar um vasto terreno de metáforas para qualquer fã de horror se deliciar. É um universo novamente visitado, apreciado e explorado, com outras pitadas de reflexões sociais, medos variados atrás da cortina de personagens e tramas muito envolventes.
Logo, dizer que este ou aquele filme faz parte do pós horror, (como já foram incluídos na lista por outros críticos longas como Um Lugar Silencioso, Ao Cair da Noite e A bruxa e as produções que me referi agora há pouco), é como dizer que eles chegaram de um movimento único e inédito dentro da história geral do cinema de terror. É como distinguir os outros subgêneros e selecionar em uma separação distópica o bom do ruim. O bom e ruim estão em qualquer subgênero: em cada estilo há produções boas e medíocres, e é preciso observar todas com um olhar crítico e histórico, para entender os motivos de suas criações.
Um Lugar Silencioso (2018), de Jhon Krasinski, considerado um longa de Pós Terror
Holofotes voltados para o retorno de um estilo próprio
Há também um ponto importante a se considerar: o retorno desta vertente, após décadas e décadas de um terror que passou por várias características bem específicas e foi escravizado por alguns estúdios que buscam apenas o lucro, veio através de produções independentes feitos em estúdios como o A24, responsável pela produção e lançamento dos longas mais famosos deste momento como O Farol, Hereditário, A Bruxa, Midsommar . O A24 foi um dos que alavancaram novamente o gênero, com coragem e otimismo resultando em produções incríveis que tem finalmente despertado o interesse dos críticos.
E os críticos, como Steve Rose, que provavelmente não acompanharam o progresso e declínio de tantos momentos do cinema de terror, despertaram para o fato de que este gênero pode produzir belíssimas obras que tem a capacidade de lançar um olhar onírico, realista e crítico para a sociedade, para os medos e traumas dos indivíduos e para o contexto histórico de tudo o que já passamos. É um excelente momento para o gênero de terror, porque ele finalmente está encontrando uma voz ativa, já há muito perdida dentro de tantas outras produções.
Hereditário (2018), de Ari Aster, produzido pelo A24
Mas ainda sim, uma voz já utilizada, estilizada e transformada ao longo dos anos.
Precisamos baixar esse olhar superior e entender que as boas obras estão por toda parte, assim como as ruins e que é preciso uma atenção maior para vê-las entre nós.
Afinal, fantasmas existem por toda parte. Estão dentro dos armários, debaixo das camas, em ruas vazias… estão em pesadelos, em distúrbios psicológicos, traumas do passado e problemas sociais graves e persistentes. Fantasmas são presenças etéreas criadas a partir do medo, e o medo é qualquer coisa disforme que pode apavorar, assumindo formas, cores, símbolos e personagens diferentes. E aí está a mágica do cinema de terror. Criar tramas diferentes para situações variadas de medo e condicionar os “monstros” às nossas próprias condições de sofrimento e pavor diante das situações diversas, sendo elas totalmente fantasiosas ou realistas.
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