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Foto do escritorLai Caetano

God of War e as Eddas: a polêmica da aparência dos personagens e a exigência de fidelidade à expecta

Um jogo precisa, necessariamente, respeitar a caracterização “histórica” ou “comum” de personagens reais ou fictícios para ser considerado válido pelos jogadores? É com essa pergunta abro o post de hoje.

A criação de personagens dentro da indústria é um dos pontos mais importantes para o jogo pois são essas criações que irão chamar a atenção do público para a história que o jogo pretende contar. O background, a personalidade, as habilidades, os acessórios: tudo precisa estar harmonizado entre si e entre a aventura que será desenvolvida. Além disso, a descrição física do personagem é criada inserindo formas, cores e texturas.

Milhares de ideias são dispostas na mesa e muitas delas descartadas, ao passo que as melhores são selecionadas para serem lapidadas pela equipe de arte, roteiro e criação. Depois os personagens passam por um processo de conversão em 2D ou 3D e os personagens ganham, finalmente, “vida”. É um processo demorado que envolve uma equipe enorme de profissionais dedicados a darem o seu melhor para, quando o trabalho final é divulgado, surgirem críticas descabidas como se todo o processo partisse de escolhas arbitrárias.

O jogo God of War: Ragnarok, exclusivo da Sony, teve muito conteúdo divulgado no evento promovido pela publisher e a apresentação de alguns personagens como Thor, Freya e Angrboda, tem causado acalorados debates na internet.

As Eddas são, hoje, a maior referência histórica para a Era Viking (e a mitologia nórdica) e datam, segundo estimativas, do séc. 11. Consiste na reunião de relatos míticos, transmitidos de geração a geração como contos e lendas. Para o caso de algum jogador questionar a fidedignidade da caracterização física desses personagens, a fonte mais confiável vem desses poemas.

Um dos personagens do jogo que tem rendido debates é Thor, mostrado com barriga saliente e cabeleiras ruivas. Esse é o assunto mais polêmico no momento envolvendo o jogo. É também um Thor um pouco diferente daquele mostrado no jogo de 2018, ao passo que o Mjöllnir é o mesmo.

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Thor em God of War: Ragnarok

Quem é Thor de acordo com as Eddas? O Deus do Trovão é conhecido por criar tempestades quando enfurece, é temperamental, robusto e por seu gênio um pouco “difícil” não era bem vindo a Bifrost (pois havia receio que ele pudesse destruir Asgard). Thor carrega o famoso Mjöllnir, martelo poderoso e instrumento de seus poderes.

Especificamente nas Eddas, Thor tem barba e cabelos RUIVOS, representando o fogo. Seus olhos também são vermelhos – de sangue – e conhecido como um grande apreciador de bebidas (cerveja e hidromel). Usa um cinto que estava relacionado à sua força e isso é um dado interessante: Thor não é necessariamente poderoso por ser fisicamente “forte”, ele usa um martelo e um cinto como símbolos de sua força então faz sentido a forma com que God of War decidiu colocá-lo.

Santa Monica Studio se preocupou com um aspecto importante: fidelidade. O problema é a popularidade da imagem criada nas pessoas a partir da Marvel (e do MCU) e das diversas representações em pinturas renascentistas dão ao Deus do Trovão uma aparência atlética, cabelos dourados e um ar inspirado nas divindades cristãs, gregas ou romanas (Thor tem similaridades com Ares e Marte). É até curioso que algumas críticas à aparência de Thor levam em conta essas referências.

Claro que existe uma certa “licença poética” para retratar o Deus nórdico de outras formas, mas essa liberdade criativa não deveria ser colocada como canônica e usada como argumento para criticar a “autenticidade” da imagem de Thor mostrada no trailer do jogo. E ainda que o Thor de God of War não tivesse qualquer relação com as Eddas, penso que haveria espaço para uma representação totalmente nova do personagem.

Num geral parece ser difícil para parte do público aceitar que um personagem como o Deus do Trovão – ultimamente muito popular graças ao carismático Thor do MCU – seja alguém não atlético. Note-se que as representações de deusas associadas à força e à guerra não costumam aparentar um corpo forte e atlético e isso não é normalmente apontado como um problema. Então o que está acontecendo com Thor em God of War: Ragnarok parece ter menos sentido ainda.

Freya também chamou a atenção – ainda que pouca – pela cor dos cabelos.

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Freya em God of War: Ragnarok. Imagem: Divulgação.

Conhecida como Frigg, Frea ou Frija (a depender da região) e silimar à Deusa Afrodite ou Vênis, Freya é uma filha da “terra”, extremamente atraente, deusa da vida fertilidade e maternidade, da adivinhação, da riqueza, da sabedoria (sabia o futuro dos homens e dos deuses pela sua facilidade em atravessar as raízes de Yggdrasil). Usa um colar mágico feito de ouro e âmbar, o Brisingamen, o qual, inclusive, aparece no jogo no pescoço da personagem. Além de líder das valquírias, era considerada feiticeira em algumas regiões e essa característica, de envolvimento com magia, parece ter sido aproveitado no jogo.

Nas Eddas, Freya é descrita como uma mulher de olhos claros, baixa, com sardas, cabelos loiros e voluptuosa. Nenhuma dessas características físicas bate com as da personagem mostrada no jogo mas isso não é necessariamente um problema – ou não deveria ser. Diferentemente dos atributos de Thor, aqui houve outra escolha artística mas as mudanças são as que menos tem incomodado alguns fãs da franquia.

Outro personagem é a gigante (ou jotunn) Angrboda, que provavelmente ainda não foi objeto de duras críticas apenas porque alguns aficionados estão focados na barriguinha de Thor.

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Angrboda em God of War: Ragnarok. Imagem: Divulgação.

No jogo ela é uma garotinha e embora, fisicamente falando, pouco se disse sobre sua ancestralidade, sua frase final mostra a importância da personagem e inspira alguns mistérios que nos faz presumir que ela possa ser alguém de grande para a história.

Angrboda é uma das parceiras amorosas de Loki. Nas Eddas, ela é mencionada apenas uma vez como mãe de monstros (de três, especificamente: o lobo Fenrir, a serpente Jörmungand e a rainha dos mortos, Hel). Nada é mencionado a respeito de sua aparência ou de seus atributos físicos – além dela ser uma “gigante”. Em outros contos como Gylfaginning, ela é mostrada como um ser que habita a floresta junto com trolls – e isso pode ser o que justifica algumas representações da gigante com a pele colorida ou com características não humanas.

Aliás, olha ela em Assassins Creed: Valhala:

Em God of War: Ragnarok, porém, Angrboda é uma jovem negra, com estatura “normal” (talvez) e um olhar gentil. É questão de tempo até começarem a surgir reclamações sobre a cor da pele da gigante, contrastando com a falta de reclamações dela ser mostrada, no outro jogo de 2020, com a pele azul.

Criações artísticas precisam ter licença poética para criarem suas próprias representações e narrativas sem que isso seja visto como um problema relativo à falta de correlação histórica ou costumeira. Uma coisa é a obra em si alertar que se inspira em fatos reais ou registros específicos mas outra, completamente diferente – e que é o caso da maior parte de filmes, séries, músicas e jogos – é a adaptação inspirada em personagens específicos. Se considerarmos que “jogos” são “arte”, então porque não é fácil aceitarmos mudanças nas representações em prol dessa linguagem?

A mudança de personagens ocorre, principalmente, por escolhas criativas, por contexto e, o motivo mais importante deles, por expectativa em atrair mais dinheiro: o jargão “quem lacra, não lucra” já caiu faz tempo e hoje muitas dessas críticas não passam de mero “choro” de quem não aceita ter as próprias expectativas contrariadas. Pode até haver uma falta de amadurecimento de quem ainda insiste em aceitar ver vikings representados nas mídias apenas como pessoas loiras, fortes, magras, altas e de olhos claros mas olha, se levarmos em conta que vikings navegavam pelo “mundo inteiro” e mantinham assentamentos em vários lugares, é bem possível que a imagem estereotipada dessas pessoas já tenha sido quebrada há quase mil anos.

God of War: Ragnarok não precisa ser fiel em todas as representações de deuses e lendas mas eventualmente acaba sendo como forma de atrair o carisma do público, ao passo que ousa em outros aspectos para, possivelmente, se aproveitar das polêmicas para atrair atenção para o jogo. Não há nada demais nisso: o jogo vai ser lançado tal como apresentado e quem não gostar por conta da caracterização dos personagens, tem a opção de simplesmente não jogar.

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