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Foto do escritorDaniel Miranda

Flee e a coragem que falta nas animações americanas

O que, exatamente, são animações? São um gênero, como comédia ou drama? Ou são só um jeito de fazer vídeos, um método de contar histórias? Ambos os lados têm bons argumentos: há algo que une animações e que está relacionado às suas possibilidades e limitações mas, ao mesmo tempo, estaria Perfect Blue mais próximo de O Silêncio dos Inocentes ou de A Branca de Neve? Persépolis é tão parecido assim com Shrek?

Esta zona mista que animações ocupam se reflete em premiações. Há opiniões controversas: tem quem ache que animações precisam que concorrer juntos com outros filmes e tem quem ache que animações precisam de uma categoria específica. As premiações pendem para um lado ou para outro. O Oscar, premiação mais famosa do cinema de Hollywood (com uma portinha entreaberta para outros cinemas) tem sua categoria de melhor filme de animação. A Viagem de Chihiro ganhou em 2003, mesmo ano em que ganhou o Urso de Ouro do festival de Berlim, o prêmio principal de um dos mais respeitados festivais de cinema do mundo, como melhor filme (e ponto).

Para complicar tudo ainda mais, a separação entre filmes de animação e filmes com atores é cada vez mais delicada. Animações vão se infiltrando em filmes tradicionais. O que seriam dos agora badalados filmes de super-heróis sem as animações, efeitos especiais e capturas de movimento?

Vai me dizer que o Smaug não é uma animação?

Flugt (Fuga, em português, e Flee, em inglês), filme norueguês de 2021 dirigido por Jonas Poher Rasmussen que foi exibido ano passado no festival de documentários É Tudo Verdade, vem para deixar as discussões mais interessantes, porque é um documentário de animação. Um drama documentário, para ser mais preciso, que busca fazer a recriação de fatos. Ele não é, nem de longe, o primeiro documentário animado, mas Fuga parece ter ganhado um destaque ímpar. Vem faturando prêmios atrás de prêmios, e concorreu simultaneamente aos Oscars de melhor filme de animação, melhor documentário e melhor filme internacional (embora não tenha ganhado nenhum deles).

(Teremos, um dia, um filme de animação ganhando o Oscar de melhor filme? A julgar pelas reclamações que Parasita gerou ao ganhar o prêmio em 2021, acho que ainda estamos longe deste momento)

Bem, vamos ao filme: Fuga conta a história de Amin Nawabi, que teve que fugir junto com sua família do Afeganistão. Ele vai terminar chegando sozinho à Dinamarca, onde, ainda adolescente, vai para um abrigo como órfão refugiado, e o filme é sobre a jornada.

A história é narrada pelo próprio Amin, já adulto e prestes a se casar. Ele narra sua história para uma pessoa envolvida na produção do filme, e é a primeira vez que se abre sobre o que aconteceu. Há, nisso, algo de muito íntimo: ouvir ele falar de coisas tão pessoais, por vezes gostosas, por vezes dolorosas, é uma experiência muito forte. Quem já se abriu com alguma pessoa (ou o contrário) sobre algo muito íntimo ou dolorido sabe bem que sensação é essa.

Além disso, o filme se foca em memórias, um tema muito querido para mim. Memórias são coisas frágeis, mutáveis, delicadas, que se moldam e são moldadas ao redor do mundo. Há mentiras no filme, mentiras grandes e mentiras pequenas, mentiras escancaradas e mentiras ocultas. Isso não tira valor do filme como não-ficção, pelo contrário, isso dá mais realismo. Estamos, afinal, compartilhando da vida de alguém, do modo como ele viu as coisas, de sua perspectiva, e a vida é cheia de mentiras que contamos para nós e para os outros.

Aliás, que filme vivo. Eu acabo adivinhando muito do que vai acontecer quando assisto a um filme, em especial se for de um gênero mais tradicional. Isso vale, também, para filmes biográficos. Perdi a conta de quantos filmes vi nos quais a pessoa vem de uma origem humilde, começa a fazer sucesso devido a uma ideia própria, é traída por um amigo ou amiga que rouba sua ideia, começa do zero e, no fim, fica mais rico que antes (e você, que está assistindo, também pode ficar tão rico quanto, se merecer, termina a mensagem implícita do filme com uma piscadinha). Se você sabe em que parte do filme está, você sabe o que vai acontecer.

Bem, isso não acontece com Fuga. Pelo menos, não aconteceu comigo. A vida nunca é uma jornada do herói, por mais que tentem encaixar tudo dentro desta visão limitada. A imprevisibilidade dos acontecimentos faz com que cada novidade seja inesperada, que cada emoção bata fundo. E elas espancam.

O filme é muito pesado. Fuga não é um filme só de animação: várias cenas reais, reportagens de TV, etc, são utilizadas para mostrar contextualizar ou mostrar a recepção nas notícias ao que o filme narra. Isso incluí filmagens muito pesadas, como cenas de guerra e corpos assassinados abandonados pela rua. Mas não é nisso que está o maior peso.

O peso está, por exemplo, quando Amin, seu irmão do meio e sua mãe tentam fugir da Rússia por barco. Eles têm que fazer uma longa caminhada até lá. A mãe de Amin morre de medo de morrer afogada (minha mãe também), e eles temem que ela não tenha coragem de entrar no barco. Ela entra, e todos os refugiados têm que ficar dentro do porão, para que a guarda costeira não os veja.

No meio da viagem eles são pegos por uma tempestade, e começa a entrar água. O barco não tem sequer um rádio, eles começam a tirar água com baldes enquanto mais água entra e o tempo passa. Todos estão apavorados. Por sorte, após um tempo, um grande navio passa por perto. Amin fica envergonhado ao ver as pessoas ricas tirando fotos deles, tão vulneráveis. O navio não os ajuda, mas avisa a guarda costeira da Estônia para que ela venha resgatá-los. Os refugiados são colocados em um prédio, que é cercado com arame farpado. Seis meses depois, os guardas dão uma opção para os refugiados: continuar lá ou voltar para Moscou. Eles voltam para Moscou, e são presos pela polícia russa, que os dá duas opções: dar todo o dinheiro que têm, ou serem deportados de volta para o Afeganistão. Eles dão o dinheiro e voltam a uma vida onde tem que ficar trancados dentro de casa com medo da violência e corrupção da polícia russa.

Amin é gay. Ele narra que sabia ser gay desde criança, que sentia atração por astros de filmes. Seu distanciamento do comportamento esperado de uma criança em uma sociedade homofóbica e transfóbica não era algo tão escondido: ele gostava de se vestir com os vestidos de sua irmã, o que era muito malvisto por todos.

Seu pai foi preso pelo por ser considerado uma ameaça ao regime comunista Afegão da época e desapareceu na cadeia, presumidamente tendo sido assassinado. Depois, os Estados Unidos começam a financiar o movimento fundamentalista islâmico terrorista Talibã, que começa uma guerra com o governo local. O destino do irmão de Amin seria ser enviado para a guerra e provavelmente morrer. O destino de Amin ao envelhecer seria o mesmo, isso se ele não fosse preso ou executado por ser homossexual antes.

A empresa do rato que ganhou 9 dos 10 últimos Oscars de Melhor Animação foi recentemente criticada por financiar políticos de direita que apoiam uma lei que visa proibir professores digam que pessoas homossexuais existem. A mesma empresa se vende como progressista mas esconde ao máximo qualquer representação de afeto entre homossexuais, além de censurar seus artistas para que relacionamentos e afetos entre homossexuais sejam eliminados. A presença de homossexualidade faça que um filme seja para adultos. O que faz um filme ser para adultos é o ódio, o desprezo, a violência, e que muitas vezes é direcionado contra homossexuais. 

Animação é ainda vista como algo para crianças, e a empresa do rato fez questão de destacar que apoia isso no Oscar. Mas quem conhece a mídia a fundo sabe que há muitas animações para adultos, sabe que muitas destas animações são maravilhosas, e que elas vão aonde filmes com atores de carne e osso tem muitas vezes medo de ir. Não dá para contar a história de Amin sendo fiel e ao mesmo tempo escondendo sua sexualidade, escondendo como os conflitos e interesses políticos moldaram sua vida e causaram tanto sofrimento. A liberdade que a animação proporciona para Amin contar sua história é a liberdade que ele não teve durante sua infância e adolescência, e é uma liberdade pela qual sempre vale a pena lutar e que vale a pena elogiar. Flugt não é só um filmaço. É, também, um filme muito importante.

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