Cyberpunk, segundo a wikipedia, é um subgênero alternativo da ficção científica marcado por “high tech, low life” (algo que pode ser traduzido como alta tecnologia e baixa qualidade de vida). Reúne “ciência avançada, com as tecnologias de informação e a cibernética junto com algum grau de desintegração ou mudança radical no sistema civil vigente”, mesclando tanto a alta tecnologia (num nível futurista) com um ideal de ruptura política/civil ou até algo mais para o anarquismo.

Na cultura pop existem milhares de referências que exploram essa subcultura criada por Bruce Bethke nos anos 80. Blade Runner e Neuromancer (inspirados no livro “Androides sonham com ovelhas elétricas”), Ghost in the Shell, Matrix, Altered Carbon, Duna, Akira e CowboyBeebop são as mais famosas explorando elementos em comum que perpetuam as características do que ficou conhecido como cyberpunk.

Dito isso, Cyberpunk 2077 é um jogo lindo e com uma nova pegada “cyberpunk” (não necessariamente anti-corportativa, ativista, visão esta que já foi mostrada, por exemplo, em Blade Runner 2049). É divertido andar por NightCity e reparar nos detalhes da cidade, na caracterização dos personagens pela rua, nos carros, nos letreiros. Porém, tirando essa visão emocionada que eu mesma tive nos primeiros dias, quero provocar aqui algumas reflexões sobre coisas que me incomodaram no jogo e que, bem, seria legal trazer para cá até para fazer um olhar mais maduro sobre esse grande lançamento.
“Ah Lai, é só não jogar“. Meua migo: eu paguei pelo jogo, estou curtindo e tenho todo direito de não só consumir, mas criticar. Apesar do jogo ser realmente muito bonito e gostoso de ser jogado, não está livre de críticas e não acho prudente estabelecer certa permissividade (ou o famoso “passar pano”) para uma empresa no nível da CD.
O que a CDProjekt está fazendo então?
Deixando de lado os problemas com a indústria de jogos e as grandes empresas, crunches, omissões nos anúncios do jogo (tanto para investidores quanto pra consumidores), os inúmeros bugs e os problemas de reembolso, o jogo é vazio dentro da própria promessa que faz.
Dá pra definir Cyberpunk2077 como algo muito “cyber” e nada (ou quase nada) “punk”. Há uma atmosfera meio vaporwave, meio futurista e meio anos 80/90 explorada no jogo, a noção de hackers, melhoramentos tecnológicos no corpo, armas tecnológicas e outras coisas mais que são realmente legais.
Certamente quando esse foi o nome escolhido para o jogo, os aficionados por essa subcultura imaginavam algo grandioso e com uma crítica social contundente no nível dos filmes/livros/animes feitos até então. Afinal, chovem referências por aí e há campo para se criar muita coisa nova. Estava sendo vendido algo ali unicamente pela escolha do nome do jogo e aí eu vejo um problema surgir, a quebra da expectativa em consumidores como eu.
Dissociar o que é cyberpunk da questão política é esvaziar o próprio termo e tudo o que ele representa e o jogo não tem a menor preocupação em trazer isso dentro de seu ambiente. Bem, parecia ser essa a proposta desde o anúncio e a publicidade até a parte na customização do personagem em que você escolhe a sua classe. Porém poucas horas de jogo e já dá pra ver que o que está sendo mostrado ali é um GTA em primeira pessoa com gráficos irreais de bonitos. De novo: o jogo não é ruim e ser parecido com GTA não é uma crítica (poxa, GTA é mto bom!); o problema é que o jogo não tem nada de novo onde propunha inovar.
Apesar de “punk” no nome, ninguém (aparentemente) está realmente lutando contra “o sistema”
Em Blade Runner, Decklan é um policial que trabalha caçando replicantes, até que acolhe Rachael, se apaixona por ela e passa a ter uma outra visão desses seres, desistindo da profissão ao fugir com sua amada. Na sequência, Blade Runner 2049, “K”, ou Joe, é um replicante que caça replicantes e ao tentar solucionar um mistério, se vê obrigado a largar para trás a corporação governamental que serve e que é controlada por um magnata interpretado por Jared Leto (a luta política aqui é sutil mas não é rasa). O nome ser “K” é uma referência à série de fabricação do replicante, que ao longo do filme é humanizado ao ser chamado de “Joe”.
Em Ghost in the Shell Major Motoko é uma ciborgue que lidera uma unidade de serviço secreto e seu corpo foi tão modificado ao longo dos anos que lhe restou apenas o “fantasma dentro da concha”. Isso leva a reflexões existenciais de Mokoto numa sociedade em que a desigualdade social é gritante, principalmente entre os robôs e os humanos.
Neuromancer busca fazer uma provocação mais social, em como pessoas com muito poder na sociedade pode brincar com a vida de qualquer pessoa, levando-a à miserabilidade em um mundo que já é miserável para a maioria.
O jogo não promete claramente tecer ou colocar de forma sutil qualquer crítica como as citadas aí (e isso foi uma baita jogada de marketing que fez muita gente crer que teria isso no jogo, quando na verdade não teve). Em Cyberpunk2077 você está na pele de “V” e, apesar da identificação por uma letra (tal como um replicante), você é um humano modificado. Quase todos nesse jogo são assim. Você é um caçador de recompensas que pode seguir a missão principal envolvendo o Silverhand ou trabalhar ajudando a polícia, ao capturar bandidos, impedir assaltos, etc.
Subúrbios claustrofóbicos, miséria e carros voadores
Os subúrbios são sujos, existem moradores de rua (todos de banho tomado) e tem vários aglomerados espalhados pela cidade. O que chamam de “favela” (na versão traduzida”) é, na verdade, um bairro bem bacana, bem bonitinho. Isso contrasta com a parte rica da cidade e fica bonito de ver no jogo, não vou mentir. V não mora na rua e também está longe de ser rico, mas não chega a abraçar nenhuma causa dos mais pobres, se revoltar com a desigualdade, com o desemprego ou a miséria. Boa parte das pessoas em NightCity parecem felizes e vivem bem com o que tem (?).


A V montada por mim
A falta dos carros voadores dirigíveis por V não foi um problema pra mim mas bem que eu tinha essa expectativa, de verdade. Afinal, isso me motivaria a escolher a classe Corporativa.

Minha V em Japantown, área dos Garras de Tigre (minha parte favorita da cidade)
Apesar de estar encantada com NightCity (a cidade é lindimais), senti falta daquele ambiente claustrofóbico e escuro, iluminado apenas por hologramas e holofotes, com pessoas se amontoando, carros se amontoando, o caos “comendo solto”, fumaça, poluição. Os lixos estão espalhados em vários pontos da cidade e muitos deles em sacos de lixo mesmo, o que parece ser um recurso pra deixara quele visual da cidade mais “limpo”, menos repulsivo. NightCity, na verdade, é uma cidade muito tranquila pra andar, as gangues não incomodam ninguém.
A sexualização feminina
Não me espanta que num mundo futurístico e caótico os corpos humanos sejam extremamente objetificados (como um parâmetro desse caos) e sexualizados, e muito das coisas girem em torno de sexo. Aprimoramentos robóticos em humanos para trazer novas formas de prazer; robôs e outras tecnologias capazes de dar novas formas de prazer, etc. Isso já existe hoje.
O que é bem maluco em CP2077 é que a objetificação tá mais do que exagerada e , na verdade, não há mensagem alguma: numa propaganda de refrigerante o verdadeiro “gosto” faz referência às genitálias femininas, andando na rua tem personagens assim sem qualquer contexto (do tipo, são prostitutas?) e as NPCs extremamente sensuais.
“Ah Lai mas vc viu que tem propaganda de um dorso masculino sendo apalpado por mãos femininas?”. Sim, eu vi mas aquilo ali, embora não deixe de ser objetificação, continua sendo voltado para o público masculino, o menage, a fantasia de se estar com milhares de mulheres brancas com as unhas vermelhas. Não tem fetiche feminino aí e talvez por isso e mais um pouco eu não senti que estava jogando com a minha V, mas sim com um personagem branco cis/hétero-normativo, porque eu estava vendo o mundo que foi construído a partir dessas preferências.
Sem a intenção de pregar qualquer moralismo, achei isso mais exagerado que os vidradores pois estão por toda a parte, em todos os bairros da cidade.
Aliás, nisso o jogo tem uma coisa curiosa: os jogadores reclamaram da quantidade exagerada de vibradores que tem em “todo” canto do jogo. Sinceramente, vi vibradores e próteses em uma boate (no início, missão principal), em lojas de vibradores (e você pode comprar um), em “puteiros” e em outra boate, pendurados na parede, então ainda não consigo dar minha opinião sobre isso. O que posso dizer é que, considerando os contextos, não achei exagerado. Inclusive salvei os registros aqui (por favor, clique apenas se você for maior de dezoito anos).
É RPG ou não é?
Bom, me pareceu que apesar de ter sido vendido como RPG, não é RPG. E claro, não é justo comparar o jogo digital com um RPG de “mesa” (este último que permite infinitas possibilidades de jogo), mas mesmo em outros games de RPG, Cyberpunk está bem aquém.
Primeiro, a escolhas das classes não fazem diferença no jogo. Independentemente de onde você começa a sua missão inicial (uma espécie de introdução), logo no início chega num ponto que escolher ser Nômade, Marginal ou Corporativo afeta em nada o curso da história: todos farão as mesmas coisas, as mesmas missões, principal e secundárias.
Esperava que, sei lá, como marginal eu pudesse ganhar credibilidade arrombando viaturas, depredando prédios públicos, neutralizando policiais ou coisas assim. V é sim um mercenário mas que aceita trabalhos para abater gangues e ajudar a polícia. Basta neutralizar uma gangue em um beco que seus pontos de credibilidade aumentam. Ou ainda, que V Corporativo fosse, de fato, alguém interessado em ajudar o “sistema” e não a combatê-lo ou ainda, que V enquanto nômade fosse alguém muito bem relacionado e preparado para sobreviver a qualquer adversidade.
Imagina só o Silverhand (Keanu Reeves) dividindo a mente com alguém corporativo, coisa que vai contra tudo o que ele defende? Isso poderia render diálogos hilários …

Outro ponto que eu esperei ser aprofundado eram as gangues. Imaginava que a sua escolha inicial pudesse interferir e possibilitar ou impedir que você fizesse parte de uma gangue no jogo. Bem, isso não acontece.
As escolhas nos diálogos não parecem interferir na personalidade de V. Depois de um tempo, dentre as respostas de um diálogo você pode escolher se dá uma resposta conforme a sua classe ou se dá uma resposta genérica mas ainda assim, é um recurso que foi usado de uma maneira muito pobre para poder ser considerado RPG. Por exemplo, em Horizon Zero Dawn você pode escolher, dentre as respostas de interação do personagem, alguma coisa agressiva, amigável ou amável e nem isso Cyberpunk trouxe.
Ao final, segundo me disseram, existe outro momento de escolha que pode interferir no tipo de final que o jogador tiver. Isso não tem relação direta com as classes também mas é, por assim dizer, o segundo momento “RPG” desse jogo.
Qual é então a personalidade de V, quais são seus ideais, seus princípios? Bem, V é apenas alguém que fala palavrão e aceita os trabalhos que lhe são passados e muitos desses trabalhos são pacificar a cidade e ajudar a polícia, mesmo sendo um nômade ou marginal …

A V montada por mim
Não são apenas esses os problemas de Cyberpunk2077 mas como vi muitos gameplays e eu ainda estou avançando no jogo, foram essas as impressões até aqui. Pelo que tenho visto acompanhando quem finalizou o jogo, os problemas persistem.
Tenho feito sidequests junto com a missão principal por realmente gostar da ambientação do jogo e estar encantada com NightCity mas até aqui, com 40 horas de jogo (contando as horas que o jogo estava com bugs), consegui listar essas coisas que, pra mim, poderiam ter sido melhoradas.
Não é algo que me incomoda a ponto de não querer jogar mais CP2077 mas certamente me causa incômodo enquanto mulher que está consumindo esse produto e estava de coração aberto para receber esse jogo e todo o universo que foi prometido. Devemos aceitar a resposta de “jogo inacabado” para compreender as diversas falhas? Bem … NÃO. O jogo foi vendido como um produto completo então embora desde o lançamento passe por diversas atualizações, é o produto final e como produto final deve ser criticado. The Last of Us 2 mostrou que é possível fazer um jogo para agradar quase todos, com imersão em terceira pessoa, adotando uma jogabilidade fluida, gráficos excelentes, trilha sonora top e um roteiro coeso e muito profundo.
Será tão difícil criar algo tão grandioso assim? Ou ainda: gráficos bonitos e jogabilidade fluida seriam o suficiente para fazer CP2077 um marco nos grandes jogos?
A CDPJK está nos levando para algum lugar sim, mas certamente não é o lugar que esperávamos estar ao concluir esse jogo.
PS.: fechei o jogo em 14/02 com 92 horas e quatro finais concluídos (V lendária, Johny no ônibus, “Acabe tudo agora mesmo” e Aldecaldos). Reli esse post e sinceramente, pouco a retificar. Como a proposta aqui foi falar sem trazer spoilers, não vou fazer alterações na postagem original.
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