Era de se esperar que outra obra de Lars Von Trier causasse espanto. Não só espanto, mas, aversão, terror, desespero e agonia. É assim em A Casa que Jack Construiu – produção de 2018 que acabei conhecendo tardiamente, mas que não perdeu de forma alguma o seu horror.
A CASA QUE JACK CONSTRUIU
O longa narra a história de Jack (Matt Dillon) e sua reflexão sobre seus doze anos enquanto serial killer. Sua trajetória é narrada e dividida por ele mesmo em 5 atos ou os 5 Incidentes (como prefere categorizar) e a cada nova história vamos conhecendo seu lado mais doentio, sarcástico e animalesco.
Jack começa a relembrar sua história enquanto dialoga com um misterioso acompanhante – Verge (Bruno Ganz) – e ambos vão revivendo esses cinco momentos narrados pelo assassino. Durante o trajeto arte e crime se unem em uma estranha e bizarra viagem a caminho do Inferno.
O CAMINHO PARA O INFERNO E O AUTORETRATO DO DIRETOR
A Casa que Jack Construiu é – ACIMA DE TUDO – um filme difícil de se falar e analisar. É denso, bizarro, filosófico e com uma estranha pitada de beleza em todo aquele espetáculo sádico que se apresenta: Um autorretrato de Lars Von Trier, diretor de tantas obras polêmicas e impactantes como Melancolia (2011), Anticristo (2009) e Ninfomaníaca (2013).
O diretor havia dito em entrevista que o filme se tratava de uma crítica ao governo Trump quando o mesmo estava em poder: não apenas ao próprio presidente, mas ao estilo social que acarretava o seu mandato. Contudo, A Casa que Jack Construiu é bem mais que uma crítica sócio política.
O CRIADOR
Não é fácil falar das obras de Lars Von Trier sem falar sobre o próprio diretor. Sua carreira e história são carregadas de polêmicas, absurdos e produções com alto grau de controvérsia, sadismo e insanidades: o ame-o e odeie-o é a ambiguidade constante entre os expectadores.

Lars Von Trier: o criador polêmico
Acusado de misoginia pela a forma como retrata as mulheres em algumas de suas produções, a aversão criada em suas obras criou sua fama e o tornou objeto de admiração e desespero.
***A PARTIR DAQUI O TEXTO CONTÉM SPOILERS!***
A CRIATURA
Dentro da “casa” criada pelo personagem título do filme – Jack – há um certo autorretrato do próprio diretor (que também assina como roteirista da obra): a visão onírica e rebuscada do mundo, um senso demasiado prepotente de se enxergar e até mesmo a misoginia tão evidenciada de Lars Von Trier.
A Misoginia é, inclusive, muito bem elaborada na forma explícita como o psicopata escolhe suas vítimas que são, na maioria dos casos, mulheres E, em especial: mulheres subjugadas e deliberadamente acusadas de “burras” e/ou “inferiores” sob o olhar do diretor.
“Por que a culpa é sempre do homem? Não importa aonde vá, você é sempre a pessoa que fez algo errado e é culpado…” diz ele enquanto ameaça psicologicamente uma de suas vítimas antes de matá-la: o toque irônico como a frase é dita no momento em que ele maltrata uma mulher é o contexto ácido que o diretor utiliza para representar as suas próprias polêmicas.
A CASA VIOLENTA QUE JACK CONSTRUIU
Ao longo dos 5 incidentes narrados por Jack, vamos percebendo os crimes se tornando cada vez mais cruéis, criativos e sádicos: a cena do terceiro incidente é consideravelmente uma das mais difíceis de se suportar e assistir (e é provável que você fique com ela em sua cabeça por algum tempo).
Mas não são somente as cenas explícitas que chocam: é a forma natural e espontânea com que Jack age; é sua prepotência em relação aos atos, o orgulho que exibe em suas “obras”.
Em determinado momento do longa, ele começa a se auto intitular o Sr. Sofisticação: seu alter ego é um artista do crime, um ser impecável que mata e se vangloria por isso. Esse abominável egocentrismo o faz começar a enviar fotos de seus crimes para a imprensa, a fim de se tornar um notável assassino.
Matt Dilon está impecável na performance e atuação e ouso dizer que é um de seus melhores trabalhos. Seus olhares, trejeitos e a naturalidade com que reage a tudo, deixam Jack a cada passo mais assustador.
O DILEMA DA CASA NUNCA CONSTRUÍDA
Jack é um aspirante a arquiteto. Dentro de suas próprias aspirações de grandeza, ele acredita que conseguirá construir sua casa, um projeto desenhado, redesenhado e refeito constantemente por nunca estar no nível de grandeza de seu criador. E essa sua grande obsessão que – aos poucos se transforma em frustração – é refletida na forma como Jack encara os próprios assassinatos: cada ato é sua própria arte particular, mas, nunca é o suficiente, há sempre espaço para outro crime mais grandioso e bem elaborado, fazendo com que ele sempre deseje outra vítima.
Até que a resposta chega através de Verge: ele lhe mostra que os alicerces da casa estavam finalmente prontos, e que agora Jack poderia erguer sua construção utilizando os materiais corretos, para assim ter a casa que tanto desejava. E assim Jack finaliza sua construção, utilizando os materiais mais bizarros e sádicos que o filme pode nos proporcionar.
O INFERNO DE DANTE NUNCA FOI TÃO REAL

A casa que Jack construiu: cena inspirada na pintura a óleo A Barca de Dante, de Eugène Delacroix, pintada em 1822: a pintura foi inspirada numa passagem de A Divina Comédia
Muito mais do que as atrocidades cometidas em seus doze anos, há uma viagem psicodélica para além dos muros da mente doentia do assassino: uma brilhante metáfora de A Divina Comédia, onde Jack é a representação totalmente contrária a personalidade dócil e apaixonada de Dante, e Verge é o guia tal qual Virgílio na trajetória do autor. Mas, nessa viagem tudo o que se busca é o amor próprio e a valorização egocêntrica que Jack cultiva sobre si mesmo, e sua tentativa torpe de buscar o Paraíso e fugir da condenação eterna.
Essa representação da Divina Comédia acontece no terceiro ato, quando Jack está prestes a cometer uns dos crimes mais calculados e estranhos do filme: é então que ele encontra Verge e a história se transforma: Verge leva Jack a uma viagem até os círculos do Inferno, em uma alegoria rebuscada e até de certo modo pedante, mostrando mais uma vez a prepotência de Von Trier com suas próprias obras. Enquanto isso, cenas aleatórias do Holocausto e de outras obras do diretor são jogadas na tela enquanto os dois personagens divagam sobre a maldade humana e o som da dor social.
A Casa que Jack Construiu é, um longa que engana ao parecer ser apenas mais uma obra grotesca e cruel, vestida de filme de terror. Contudo, carrega em si muitas camadas e significados. É como uma pintura contemporânea: apresenta diversos significados, ou nenhum deles. Basta você olhar e então extrair suas próprias sensações.

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